O maior jazigo na parte mais alta

Sua partida me tornou mais sábio, e é uma pena você não estar aqui pra conferir. Mesmo assim, eu nunca irei te magoar, muito menos te deixar partir… Pra sempre. Sempre existirá você em mim, como bem queria. Assim como irei continuar olhando para o meu lado e sorrindo. Não me importa o que os donos daqueles olhares curiosos pensam, eles não podem te ver e isso até que é bem divertido. Sorrio outra vez. Eles se entreolham, não sabem o por que. Fecho os olhos e sinto o sorriso inflar como um balão, de orelha a orelha. Abro os olhos. Eles desviam os olhares. Mato meu café e me retiro do local. Ao atravessar a rua eu digo entre gargalhadas: “- Você viu a cara deles?” e não preciso que você responda. A gente dobra a esquina e pula o muro do cemitério. Lembra como nos divertíamos bastante aqui? O coveiro nem esquenta mais, as vezes até vem oferecer água ou companhia. Ah é, ele também não consegue te ver. Eu sei que você não esquenta a cabeça com isso.

A gente senta no maior jazigo na parte mais alta e observa o sol se pôr, e a cada nova estrela que aparece com o cair da noite, uma nova lembrança a mente recria. Repentinamente eu falo: “- Não tem nada a ver com nada, mas já te falei que lá na minha rua as pessoas andam comentando que eu sou necrófilo?”. Coço a cabeça tentando me imaginar… Err… Como eu posso dizer… Cometendo necrofilia? E continuo: “- Pobres ignorantes. Pra eles um necrófilo é alguém que gosta de gastar tempo dentro de cemitérios… Ou talvez eles querem mesmo inventar boatos que eu venho aqui me satisfazer sexualmente…”. Não aguento e caio nas gargalhadas. Já cansei de ficar pasmo por essas pessoas que perdem tanto tempo vigiando e julgando a vida dos outros. Se eles aproveitassem metade desse tempo pra fazer o que fiz alguns meses atrás e passassem pelo o que passei, principalmente no mês passado, talvez me entenderiam. Não fiz nenhum milagre, mas consegui abrir as portas pra receber um.

Lembra quando pediu que eu invadisse o hospital e fugíssemos pela janela, como nos filmes? Peguei todos os lençóis que tinha em casa, uni um ao outro através de nós, enfiei na mochila e fui te buscar. Subornei o guarda e entrei fácil no hospital com um uniforme médico. Foi mágico ver no seu rosto os olhos brilhando ao me ver, e o nascer de um lindo sorriso. Você agarrou-me pelo pescoço e te amarrei em mim pela cintura com seu lençol, só por precaução. Joguei minha corda de lençóis pela janela e fomos descendo cautelosamente. Te peguei no colo, coloquei no carro que ‘roubei-emprestado’ do meu pai e pra onde fugimos? Acho que somos os únicos que tem um cemitério como lugar especial… Mágico! Fizemos amor pela última vez, com todo cuidado do mundo, debaixo daquela cerejeira logo ali. Foi nesse dia que você sussurrou no meu ouvido: “- Não fale nada. Não pergunte nada. Apenas me ouça com bastante atenção. Eu vou embora, mas não vou pro céu nem pro inferno… Vou pra dentro do seu coração e passaremos a ser um só. Nunca se esqueça disso!”. Pois é, nunca esqueci. Quando me disseram que você tinha dado seu último suspiro, eu sorri e olhei para o meu peito. “- Oi!”, eu disse. E tudo fez sentido.

Eu não estaria vivo se você não tivesse feito o que fez. Infelizmente pra mim tinha jeito. Como eu queria ter te conhecido anos antes disso tudo acontecer e que fosse eu com essa doença de nome complexo, que tenho até medo de repetir o nome, e você precisando de um transplante de coração. Quando eu te conheci, você já tinha o teu problema e eu estava tentando – ou achando que estava – fazer caridade passando meu tempo conversando com alguém que eu sabia que dentro de alguns meses iria morrer. Aí meses depois, tudo aquilo acontece na minha vida, na nossa vida, e descubro que preciso de um transplante de coração. Naquele dia no cemitério eu não entendi, mas no dia que eu acordei do meu transplante de coração e recebi aquela notícia, como eu já disse, tudo fez sentido. Nem tudo é como a gente quer, mas algumas das coisas que você queria está sendo… Nos tornamos um só, e, infelizmente, agora, o maior jazigo na parte mais alta, carrega o seu nome. E você me fez prometer nunca ficar triste por isso.